SOBRE CONTATO E COMUNICAÇÃO E O VELHO COLONIAL VÍRU$

Bruna Kury

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Foto do recipiente usado na performance “A fronteira do corpo é o próprio corpo e/ou próteses”. foto: Paulx Castello

Foto do recipiente usado na performance “A fronteira do corpo é o próprio corpo e/ou próteses”.
foto: Paulx Castello

Algum tipo de quarentena para algumas corpas parece existir de diversas formas há muito. Pessoas transvestigeneres, racializadas, imigrantes, dissidências em geral, somos excluídas e segregadas socialmente pela heterobrancocissaudávelnorma. Pessoas soropositivas são proibidas de entrar em alguns países também a muito tempo, segundo relatório do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), a lista de países que oferecem alguma restrição à entrada de pessoas vivendo com HIV inclui Austrália, Cuba, Emirados Árabes Unidos, Egito, Israel, Líbano, Nova Zelândia, Paraguai, República Dominicana, Rússia, Singapura, Síria, Taiwan, entre outros.

Me parece que o contato é algo a que devemos conversar. Contato e comunicação! A artista Linga Acácio, durante um encontro com o coletivo Loka de Efavirenz (coletivo que discute e pensa o HIV para além de uma resposta biomédica e centrada em quem não vive com o vírus e seus estigmas), disse pensar que o vírus do HIV age diretamente dentro e fora de nós em tecnologias de comunicação, nos afastam e nos silenciam. Um vírus silencioso.

Pensemos aqui também em uma comunicação outra que não a normatizadora, assim como presencialidade ancestral - que é a oposta a essa cultura de controle das potências diversas.

As comparações são perigosas, esse texto não vem para igualar nada, apenas para analisarmos o que compõe, tanto os vírus, como as estruturas que são postas como base de nossas vidas. Mais uma vez: contato e comunicação.

Recipiente usado na performance “A fronteira do corpo é o próprio corpo e/ou próteses” onde a artista aborda também questões como higienismo social e gentrificação. Na ação é acoplado microfones de contato no corpo e no recipiente. Imagem base da gi…

Recipiente usado na performance “A fronteira do corpo é o próprio corpo e/ou próteses” onde a artista aborda também questões como higienismo social e gentrificação. Na ação é acoplado microfones de contato no corpo e no recipiente. Imagem base da gif por: Paulx Castello

O vírus do HIV se transmite basicamente através de fluidos corporais, muitas vezes no ato sexual, e isso o faz ser ainda mais um tabu, já que fere instituições tão dogmáticas como igreja, família nuclear, estado etc

Quando surgem as primeiras notícias do novo coronavírus, a mídia faz questão de frisar e ressaltar que NÃO É AIDS, justamente pelo estigma de que pessoas soropositivas são sujas e promíscuas. O estigma de que apenas alguns corpos se contaminam persiste. Nos anos 80-90, por exemplo, as mulheres cis eram excluídas das campanhas contra aids - campanhas estas que muitas vezes ao invés de ser contra aids, tem um posicionamento explícito de contra aids e contra pessoas soropositivas, o que reforça ainda mais o estigma do mau e da marginalização direcionada. Muitas vezes chegando ao cúmulo da criminalização dos corpos soropositivos. Os corpos transmissores de acordo com a mídia sempre foram de homossexuais e travestis... hoje já sabemos que a proporção de pessoas cissexuais e hétero que também tem o vírus é enorme. O novo coronavírus no caso, age também indiscriminadamente (Pessoas idosas e com problemas cardíacos também desenvolvem os sintomas mais rapidamente. E obviamente as pessoas mais afetadas continuam sendo as pobres e racializadas. Opressões estruturais!), e também por isso existe um clima de solidariedade maior (além de - obviamente - proporcionalmente ser alarmante o contágio e mortalidade do novo coronavírus!).

O medo da proximidade, de estar junto – nesse momento em que o distanciamento social é necessário – também agravam outros distanciamentos por recriminações já existentes. A privacidade e a intimidade, os boatos de “fulaninha do andar de cima tem coronavírus”, ou o nocivo e preconceituoso “cicraninha é aidética”. Para além de ser invasivo a pessoalidade alheia, é também cruel e proliferador de desinformação. Comunicação errônea é violência. Fakenews interferem na política (vide algoritmos que colaboraram com o atual despresidente).

 
 
 

Pensando “doença como metáfora”(Susan Sontag), podemos expandir a idéia de que as coisas não são 8 ou 80 numa sociedade que para além da doença tem o Estado manipulando seus interesses. Pensar por exemplo o HIV ou o novo coronavírus, que para além do pensar da medicina, também representa grande mudança nos aspectos econômicos, culturais, políticos e sociais… e é óbvio que o poderio público tem por obrigação nos dar assistências, mas não anulemos a potência de organizações não estatais ou até mesmo o que pequenos grupos organizados têm feito. A formação de novas comunidades e a reafirmação de comunidades dissidentes que já existiam.    

Gif com base na imagem do panóptico (Jeremy Bentham, 1785). Policiamento e controle de gênero, classe e raça. A militarização dos corpos dissidentes, pobres e racializados a revelia dos interesses do capital.

Gif com base na imagem do panóptico (Jeremy Bentham, 1785). Policiamento e controle de gênero, classe e raça. A militarização dos corpos dissidentes, pobres e racializados a revelia dos interesses do capital.

Independente das teorias da origem do vírus, uma coisa é certa, o estado se apropria do mesmo para aumentar ainda mais o controle a nossos corpos. “El coronavírus es la militarización de la vida social.” disse Maria Galindo do coletivo Mujeres Creando.Só quando os países hegemônicos dão o aval é que medidas são tomadas. Lembremos que a OMS só declara que a aids é uma epidemia quando o vírus chega a Europa e Estados Unidos, mesmo já tendo grande parte da Ásia já atingida.

Muito complicado fazer comparações quando se trata de algo tão singular quanto uma epidemia mundial, mas para além de comparações, as intersecções das questões são extremamente necessárias. Devemos pensar sim em GÊNERO: abortos impossibilitados, acompanhamentos hormonais a pessoas trans paralisados, escala de dias em que homens ou mulheres podem sair às ruas para fazer o necessário básico - situação que gera transfobia nos países que optaram por este escalonamento; CLASSE: um plano de renda básica mundial para além da quarentena, o quanto pessoas pobres são mais afetadas ou o quanto pessoas pobres doentes ferem mais o imaginário colonial higienista do que pessoas ricas doentes e RAÇA: corpas racializadas negras e indígenas sendo massacradas e mortas cotidianamente pelo colonialismo recorrente e também corpas amarelas sendo estigmatizadas ainda mais - vide mortalidade latina-migrante em Nova York, negros e indígenas no Brasil, etc. Assim como a falta de assistência a idosos, a violência crescente mesmo com o isolamento social a mulheres e corpos trans etc

É sobre acesso e capital, mas também é sobre sensíveis para além da economia, é sobre o projeto de humanidade que falhou (ou não, já que o próprio conceito de humanidade envolve tantas colonizações cotidianas, animalizando, objetificando e escravizando corpas não brancas e dissidentes). O quanto é uma junção de fatores, alguns extirpados de corpas vulneráveis. Acessos e até afetos negados pela maquinaria colonial.

O risco iminente que algumas corpas sofrem, e tantos golpes. Se não morremos de vírus, morremos de balas que só acham nossos corpos; quando não morremos por falta de emprego e condições básicas de estruturação nesse cis-tema capitalista, morremos por (trans)feminicídio, transfobia, racismo e até mesmo suicidadas. O cis-tema é fechado e aprisionador, por isso temos que rasgá-lo, criar novas armas, entendermos que existem pessoas que sofrem mais que outras, mesmo isso não sendo uma hierarquia exatamente.

Que as revoltam ecoem, que as redistribuições de renda e privilégio se façam nesse estado de emergência que vivemos a tempos. Que nos protejamos e que a vida seja abundante. Que pessoas brancas entendam seus privilégios e a branquitude tóxica, e sim, que se coincientizem e estejam a frente de nossos corpos nas manifestações (e se não o fizerem, saibam que a cada afetividade entre nós, nos fazemos mais fortes e além disso, o ódio em comum também nos une. O que vocês chamam de militância, nós fazemos pelo simples fato de existir e sobreviver), pois seus corpos se fazem inatingíveis, enquanto corporalidades negras e dissidentes são alvos letais. Em táticas de guerra corpos negros foram massacrados por serem mandados a linha de frente, e nessa maquinaria colonial, continuamos sendo os primeiros a morrer. E interseccionalizemos, George Floyd foi assassinado brutalmente por um policial a serviço do estado nacionalista dos EUA, uma semana depois Tony Mcdade, um homem trans negro também foi morto por um policial americano. Caso abafado. Dentre tantos.

Quantas pessoas próximas que morreram pelo estado e seus capangas... quantas mortes nos trópicos invisibilizadas… Não é uma série americana, é vida e morte reais, lá e cá.

Devemos nos cuidar para sobreviver. Algumas de nós somos as últimas na fila para conseguirmos um apoio médico estatal, portanto nos resguardemos. Passará ou aliviará o novo coronavírus, assim como a gripe “espanhola”, a varíola, a H1N1, a gripe aviária,etc... o que não passará é o massacre do patriarcado a determinadas corpas. Então nos armemos! Contato e Comunicação!


Frames da performance com part. de Vulcanica Pokaropa no CCSP, Brasil. 2019

Frames da performance com part. de Vulcanica Pokaropa no CCSP, Brasil. 2019

Há um tempo tenho conversado com o hiv e no/com o corpo em performances, dentre elas “a fronteira do corpo é o próprio corpo e/ou próteses”. Nesta versão falando sobre as fronteiras do corpo e geográficas, colocadas por interesses políticos e econômicos, assim como o distanciamento social é também influenciado pela economia e política da hegemonia, que distancia alguns corpos para subalternaliza-los, mantendo assim a roda da normatividade e oprimindo, segregando, escravizando e colonizando.

 

Links de origem das imagens que compõem o plano de fundo:
https://g1.globo.com/sp/mogi-das-cruzes-suzano/noticia/2020/05/22/avo-medico-cria-cortina-do-abraco-para-contornar-distanciamento-e-abracar-os-netos-apos-dois-meses-video.ghtml

https://origin-novo.campograndenews.com.br/lado-b/comportamento-23-08-2011-08/sem-poder-tocar-que-gesto-e-igual-a-um-abraco-caloroso

https://tabonito.com/avo-embrulha-neta-em-plastico-para-poder-abracar-o-pai-policia/

https://revistamarieclaire.globo.com/Noticias/noticia/2020/05/neto-cria-engenhoca-com-cortina-do-banheiro-para-abracar-avo-coronavirus.html

https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2020/05/11/coronavirus-filhos-se-vestem-com-sacos-plasticos-para-dar-abraco-no-dia-das-maes-em-americana-e-campinas.ghtml

https://www.metropoles.com/mundo/coronavirus-familia-inventa-luva-do-abraco-para-fazer-carinho-na-avo

https://www.acidadeon.com/campinas/cotidiano/coronavirus/NOT,0,0,1516615,abraco+em+saco+plastico+e+carreata+animam+dia+das+maes+na+regiao.aspx

https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2020/04/21/protegidas-por-saco-plastico-mae-e-filha-profissionais-da-saude-dao-abraco-para-diminuir-a-saudade-no-rs.ghtml

https://veja.abril.com.br/saude/imagem-da-semana-abraco-nem-que-seja-de-plastico/

https://www.campograndenews.com.br/lado-b/comportamento-23-08-2011-08/protegido-com-capa-de-plastico-bruno-resolveu-matar-saudade-da-mae

https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/brasil/2020/05/saco-plastico-vira-solucao-para-abraco-entre-mae-e-filha-durante-isola.html

https://jornaldebrasilia.com.br/nahorah/filhas-se-revestem-de-sacos-plasticos-para-dar-abraco-em-mae/

https://avozdaserra.com.br/noticias/no-dia-mundial-do-abraco-em-plena-pandemia-vale-o-improviso

https://www.nortedotocantins.com.br/04/2020/protegida-por-saco-plastico-profissional-da-saude-da-abraco-na-familia-para-diminuir-a-saudade/

https://www.alagoas24horas.com.br/1290677/medica-improvisa-protecao-com-saco-plastico-para-abracar-mae-que-nao-via-ha-dois-meses/

https://tribunaonline.com.br/menino-usa-saco-plastico-para-abracar-mae-que-trabalhar-em-uti-de-covid-19

https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2020/05/aposentada-e-aluno-utilizam-roupas-de-plastico-para-abracar-pessoas-proximas.shtml

 
 
 
foto: Camila Falcão

foto: Camila Falcão

Bruna Kury é brasileira, anarcatransfeminista, performer, artista visual e sonora, atualmente reside em São Paulo (BR) e desenvolve trabalhos em diversos contextos, seja no mercado institucional da arte ou em produções de borda. Focada em criações atravessadas por questões de gênero, classe e raça (contra o cis-tema patriarcal heteronormativo compulsório vigente e a opressões estruturais-GUERRA de classes). Já performou com a Coletiva Vômito, Coletivo Coiote, La Plataformance, MEXA e Coletivo T. Atualmente investiga sonoridades no pósporno e a criação de objetuais que são ramificações do trabalho com performance. Participou da residência artística Capacete no Rio de Janeiro, Comunitária na Argentina, Festival Anormal no México, compôs a organização da residência póspornôpyrata em Fortaleza (CE) e performou no festival Libres y Soberanas aka Performacula em Quito no Equador. Atualmente participa da residência do Pivô Pesquisa Ciclo II (2020).

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