Ali entre nós um invisível obliterante

IAGOR PERES

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Concepção imagens e edição: Iagor Peres
Som: Thelmo Cavalcanti

 
 
 

Aqui no limite do vão que estamos 

venho refletindo sobre as densidades que habitam e compõem nossas relações no espaço. Partindo de práticas artisticas, tenho me voltado a compreender o papel dessas camadas invisíveis existentes no que se entende como o vazio, nesses vãos entre nós e o mundo. Um movimento de olhar crítico ao espaço em relação às densidades que me refiro. Entendendo que as mesmas atuam sobre as dinâmicas de relação com o meio, e que em suas diferentes (i)materialidades se conformam entre a habitação do imaginário e a estruturação do espaço.

Como densidade, a pelematerial possui a habilidade de demarcar e expor ro(u/m)bos das estruturas compostas (por quem?), deixando a vista toda e qualquer vala no terreno. Um denso especificamente elaborado para encobrir e despersonificar. Essa camada espessa e amorfa que diz sobre o processo de racialização é um dos exemplos de outras densidades existentes com tipos e variações imensuráveis.

Existem densos que; borram; são partículas tossidas das fábricas de gesso; densos que como a pelematerial se engendram desde o imaginário; existem os que não imaginamos; os que vêm da ordem do sentir; Me refiro a camadas, então como uma vastidão de forças não necessariamente controláveis e também movedoras. De materialidades espessas, de partículas, de coisas fora do nosso entendimento, componentes, fuligens, excretos e ideais que formulam mundos. Corpos que habitam ali (aqui) no entre-espaço de nós e os mundos. 

Do invisível ao indizível, os momentos em que a atenção ao que não se vê aflora a percepção de outras densidades que nos permeiam. Ou seja, olhar pro invisível auxilia a reflexão crítica sobre como outras camadas também agem no nosso cotidiano. Densidades que reformulam e enfatizam as esferas ambientais que estamos (ou fomos dispostos?). Relações com o invisível que compreendem esses corpos também como vidas agentes e modificadoras de não só nossas relações, mas de todo o meio.

Imagem 1. Estrutura para campos densos: topografia de um terreno de valas. linhas de ferro organizadas em vãos. vãos para conter corpos. pele sobreposta. habitat a céu aberto.

Imagem 1. Estrutura para campos densos: topografia de um terreno de valas. linhas de ferro organizadas em vãos. vãos para conter corpos. pele sobreposta. habitat a céu aberto.

Atentar-se a existência daquilo que coloca diretamente em cheque a soberania que a humanidade sempre pensou exercer sobre esses outros corpos. Ou seja, contrapor nossas relações de poder para com outras materialidades, independente se entendemos essas materialidades como vida ou não. No fim, pouco interessa se a humanidade vai ou não compreender esses densos como vida agente, como presentes e importantes. Já que independente da ordem do que nomeia essas densidades continuarão agindo, e sendo parte de um espaço total onde nenhuma forma de vida está deslocada da outra. 

As matérias inanimadas(?) que a humanidade ocidental não compreendeu como vida, na verdade fazem parte de um grande conjunto total que segue um balanceamento das próprias forças que gere. E quando falo sobre um balanceamento das forças não digo sobre uma matemática simplesmente compensatória, há muitos mistérios nas fórmulas que o mundo gere suas próprias forças. Incompreensíveis sustentos e desabamentos, movimentos e retomadas inexplicáveis. Fora todo o pó que retorna a vagar no ar e as intocáveis sensações que também correm atravessando a tudo por esse sistema quase fechado que é o globo. Tudo isso dizendo que dois ou mais corpos ocupam o mesmo espaço.


Ali entre nós um invisível obliterante.


salto 

Uma vez entendido o recado, após se enxergar obrigada a estabelecer uma relação de atenção ao invisível e esses densos existentes, a humanidade desenvolve um modo de aversão ao que não se vê. Procura por maneiras de neutralizar esses encontros com o invisível, ao se deparar com a experiência traumática de não controlar aquilo que foge ao seu sistema de monitoramento.

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O desespero nato por permanecer nessa humanidade gerida pelo capital explorando os recursos do globo, leva o humano a desenvolver um dispositivo que aja diretamente sobre o vazio. Imagine que após a ressaca da pandemia, mais ou menos 40 anos depois, como uma demanda do alto desenvolvimento higienista das classes mais abastadas, a branquitude reúne seu acúmulo tecnológico e capital para desenvolver uma maneira de controlar a entrada e saída de quaisquer partículas em um determinado campo ao redor do corpo. Um dispositivo que possibilita recriar a experiência de isolamento e “seguridade” pro corpo humano em campo expandido.  

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Capaz de criar uma redoma a x metros de raio do corpo, uma espécie de camada translúcida que se movimenta como uma bolha em frente a uma rajada de vento, é acionada por esse dispositivo simples que se acopla ao corpo. Essa camada é responsável não apenas por repelir, mas desintegrar partículas desconhecidas, ou não listadas no device. A produção do aparato está nas mãos de grandes indústrias com patente monopólio e distribuição global. 

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A burguesia agora, mais tranquila, retorna a caminhar na rua com assumidamente bolhas invisíveis que a separa do resto do mundo e erradica o que a brisa do vento trouxer. Uma vez entendido como política de segurança pessoal. Elaboram-se versões desse objeto que são capazes de reproduzir esse mesmo campo numa escala maior. Agora a ponto de proteger, não somente um indivíduo, mas como também um grupo de indivíduos. Um dispositivo tamanho família. Não demora muito esse apetrecho se aplica como muros sem cercas. Substituem a madeira e o arame nos latifúndios, nos condomínios alphaville já são a própria divisão de quintais. Grandes ricos não vivem mais em lugares onde se pudesse perceber muros. Os pontos onde era possível avistar barreiras entre rua e outras propriedades continuam em territórios periféricos, onde ainda se observa a continuidade de contágio.

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Em paralelo, a indústria aprimora cada vez mais o aparelho para abranger maior variedade de erradicação de corpos. Nessa altura, as instituições de segurança já obtêm  versões desse apetrecho para desintegrar corpos humanos. E utilizam como bem entendem. Alguns problemas se apresentam. Como distinguir um indivíduo do outro? Até então o device estava preparado para distinguir diferentes composições de partículas e dna. Mas como distinguir humanos entre humanos? A demanda para complementar a performance do dispositivo e assegurar ao casal estado+empresas, mais uma vez, o total controle civil, os setores privados desenvolvem um chip  que como um chassi contém numeração específica para identificar e distinguir-se entre demais. A implementação se torna obrigatória. 

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O projeto de substituição das UPPs com o engendramento do aparato as políticas de segurança pública implementa a limitação de áreas de periferia. O novo aparato moderno consegue não só isolar grandes áreas, como aniquilar qualquer indivíduo não autorizado que ultrapasse a barreira. O device agora abrange grandes áreas. Instaladas para a aplicabilidade de toques de recolher e isolamento desses grupos para com outros grupos da sociedade. 

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A pressão popular chega ao serem notificadas as primeiras mortes por ‘‘falhas do dispositivo’’ que só se repetiam nos limites das periferias. Salto. Após uma série de processos judiciais, verifica-se que no device conta uma lista ‘aleatoria’’ de numerações que estariam autorizados pelo estado a serem executadas. Pouco depois as investigações são arquivadas. A “falha” permanece, mas oscilando em frequência. 

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Meia geração depois, o plantio a céu aberto está escasso. As vegetações passam por um drástico movimento de cenário. Sementes entendidas pelo device como corpo estranho, são eliminadas ainda no ar. A produção primária de alimentos agora está localizada dentro dessas camadas espessas. O vento agora não traz mais nada. As classes abastadas agora acompanham e se deparam com o ápice de mais uma crise, a alimenticia.

 
 
 
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Iagor Peres (1995, Rio de Janeiro). Vivo e trabalho em Recife há 4 anos. Atuo nas linguagens das artes visuais. Membro do coletivo CARNE – Coletivo de Arte Negra. Artista premiado na 6ª Edição do Prêmio EDP Nas Artes do Instituto Tomie Ohtake, SP, 2018. Residente na Villa Waldberta, Munich, GER pela residência PlusAfroT, 2019. No mesmo ano, residente em Lugar a Dudas, Calí Colômbia. Primeira exposição individual na Galeria Maumau - 2018, Recife a partir convocatória Lançamento de Artista da Galeria Maumau além de outras exposições coletivas como: O melhor da Viagem é a demora, Valongo Festival, Santos (SP) e O que não é floresta é prisão política, Galeria Reocupa, São Paulo (SP). Me interessam as densidades e substâncias visíveis e invisíveis que compõem as relações no espaço, utilizando matérias sintéticas e orgânicas e partindo da perspectiva como corpo racializado. Me atento também as relações entre os processos de formação do imaginário e a arquitetura, buscando práticas híbridas para compor processos de criação.