As Escrevivências de Kalunga
Jéssica Rangel de Castro
CONSTRUÇÃO PRODUZIDA NO MORRO DA CONCEIÇÃO, NO CENTRO DO RIO DE JANEIRO. 2020.
— Olhar de Vitorino
Eu escrevivo minhas narrativas, por meio de uma presença identitária negra. Uma mulher caminhando e empoderando-se diante do corpo, tambor, trajetórias, sagrado, pedagogias, e de minha Luta Preta.
Tenho trinta e cinco anos, e sou mãe de um menino rei, este meu Kalunguinha; e com seus oito anos, galga falas, observações e ações, assentadas por um cobertor familiar afetivo e tessido por passos que vem de longe.
Minha mãe Sônia Rangel Domingos, é meu primeiro referencial de mulher preta, de feminismo, mulherismo, desatadora de nós e cumba de suas narrativas. Muito sofreu, calou, esbravejou, trabalhou, venceu e recomeçou.
É a senhoras dos chás, infusões, do plantar, da enxada que não para de arar o quintal de sua mãe. A mulher negra que acolhe constantemente novos desafios, estudos, e mantém seus desejos, em lugares próximos e esperançosos.
Meu pai, Luiz Fernando de Castro, homem negro e filho adotivo de uma família branca; traz narrativas fortes sobre seu estado de ser, estar e conquistar. Uma voz certeira, atenta e vitoriosa em suas transmutações diante sua masculinidade preta.
Eles estão vivos, juntos, e tecem muitas inspirações, como de certo, são inspirados a potencializarem o melhor para si e seu quilombo.
São os melhores e maiores avós deste mundo. Partilham em seus ensinamentos, afeto, paciência e mantém em nossa roda, alimentos que nutrem minha maternidade, nossos passos individuais e nossa colheita conjunta.
E pontuando meus cumbas, como não mencionar a nossa matriarca. Minha avó, dona Elídia Rangel, viva em seus noventa anos de legado, sustentando por muita sabedoria, simplicidade e sagacidade.
Das terras de Minas, dos sopros do Caxambu, conta que minha bisa, era escravizada das senzalas e, se nós jovens ouvíssemos os cumbas, "nadaríamos" por outros mares. Esta senhora negra, muito labutou pela criação de suas filhas, muito acompanhou seu netos e ainda se faz viva nas histórias de seus bisnetos. E ao partilhar escuta, ela vai registrando oralmente muito aprendizado. Um livro, que venho percebendo, estar tendo a chance acertiva, de descobrir e registrar de diversas formas, as linhas narrativas de minha família. Eu a agradeço!
E foi ao lado de vô Onofre Domingos, que enquanto vivo, pude sentir a acolhida do seu afeto e dedicação para com os seus; com quem ela, teceu um elo longo de parceria e companherismo.
E hoje, no orum, ele se faz presente principalmente, quando sua companheira de vida, minha avó, tece memórias muito bem detalhadas sobre este nosso ancestral.
Eles foram a primeira geração de moradores do bairro que residimos. Este o Jardim Gramacho; onde tudo era mato, eram animais e seus quintais; onde o saci rodopiava, o mar era nado, a simplicidade era casa de estuque e cheirava a alecrim.
Eu os reverencio! Pois são meus primeiros pretxs velhos! Asé e mojubá!
Realizado no quintal de minha avó, eu e meu filho, tecemos nossa umbigada através do canto do Jongo. Este construído por nosso amor ao tambor. 2020
— Olhar de Vitorino
A periferia mencionada ( Jardim Gramacho) é mais um território de fragilidades estruturais, negligenciadas pelo estado e suas corrupturas. Mas, de concomitante,potências singulares, que se agigantam diante suas tentativas e construções.
E para cá, sempre sou retornos, épocas e recomeços. Meu transitar é largo, mas o universo sempre me assenta a casa de vó, ao seu quintal e suas ervas. E no exercício da observação, acolho os aprendizados desta morada, de modo que reverêncio essa minha premissa, como um matriarcado enraizado, em minhas Áfricas e diásporas brasileiras.
Por aqui, suas terras narram, uma urbanização, construída com bases de presenças industriais e pela existência local de um aterro sanitário, que por mais de cinquenta anos, fora prática insalubre, precária, opressora e letal. Um subjugo humano, limitado a visão de um lixo sujo, adoecedor, base de casas e giro de uma aplicabilidade mínima de subsistência.
Algumas ruas, são passos de um submundo escuro, onde o tráfico e a fome, caminham lado a lado. Mas, dentre cada foco desta escuridão, pontos de luz e esperança, provinham de singularidades. São pessoas, ações, ferramentas, informação, que destrincharam e potencializam gestos transformadores...
Aqui! Um olhar para as práticas limitadas ao assistencialismo; para a presença em massa de um público evangélico, e que em muito, oprimem e limitam perspectivas libertárias em seus potencias de informação, ações e manifestos...
É preciso sempre dentro destas aplicabilidades, indivíduos e expectativas, que transbordem as amarras da alienação e das engrenagens do racismo estrutural e dos preconceitos atrelados a religiosidades e as discussões sobre a multiplicidades do gênero e sua afetividade.
Com tudo, fora neste bairro, em um Ciep, que iniciei, minhas práticas em Dança Educação; Onde por meio de um projeto ( PETI/ Programa de erradicação do trabalho Infantil) da prefeitura local, profissionais de várias áreas, mediavam oficinas específicas no contra turno do alunado.
Eu me recordo, de muitos alunos evangélicos, alguns com familiares na linha do crime local, muitos, com várias questões estruturais defasadas e violadas por déficits financeiros, afetivos, e sociais. Com tudo, era um fronte, que me vi sendo vitoriosa ao lado de cada um delxs, por nossas transmutações.
E pela dança, eles demonstravam suas habilidades, argumentações, cansaços, sonhos, beleza, empatia, alterações comportamentais e etc.
Eu tenho fotos, alguns registros que me trazem saudosismos. Vezes, encontro algumas destas vidas narrando seus passos por aqui e por lá.
Algumas trajetórias, envoltas a gestações precoces, a uniões afetivas violadas e violentas; a desistências múltiplas sobre si.
Outras, em caminhos mais certeiros e positivos sobre passos em êxito.
Que em seus passos, hajam resgates sobre suas raízes, sobre o alcance de informações negligenciadas e silenciadas, ascenção de almejos afetivos, profissionais e uma conjuctura de vida em equilíbrio.
Sigo agradecendo as travessias pedagógicas, que muito me são olhares delicados, sensíveis e acertivos sobre como sentir e criar estratégias de encontros únicos, potentes e transformadores.
Tessido no reduto da Pedra do Sal, no Largo da Prainha do centro do Rio de Janeiro. 2020
— Olhar de Jéssica Castro
Em continuidade, ressalvo minha formação em Pedagogia pela Universidade Estácio de Sá (Bolsista integral do PROUNI) e o passo no Bacharel em Dança pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, ainda a ser concluído.
Ao longo da caminhada, fui elencando experiências que somatizavam práticas de movimentos em espaços educacionais, projetos, ongs, palcos, ruas, rodas, pesquisas de campo e uma somatória de elementos relacionados a nossa ancestralidade, regionalidade e suas mensagens…
Esta produção fora feita no espaço cultural, Clube Copa Leme. Uma performance com a força do movimento do Orixá, do Maracatu, samba e Jongo. De 2019.
— Olhar de Vitorino
No período do curso de Dança, vivenciei meus primeiros encontros com as práticas concernentes a Disciplina Folclore e Folguedos; esta, me possibilitando conhecer e reconhecer tradições territoriais, seus mestres, e suas intensas narrativas.
Nesta mesma morada, pude estabelecer vínculos pedagógicos com a Escola do Jongo da Serrinha, em dinâmicas que alinhavam suas matrizes, ações, e construções contextualizadas com a Cultura Popular Brasileira e suas perspectivas cotidianas. ( Ali, era o morro da Serrinha! As potências e mazelas de uma favela). Um legado pedagógico, artístico e jongueiro.
Nesta mesma morada (UFRJ), participei algumas vezes de dois Festivais de Saberes Culturais organizado pela Companhia Folclórica do Rio de Janeiro. O primeiro era o Encontro de Mestres, e o segundo Folclorando.
No primeiro, o coletivo organizava uma chegança de mestres da Cultura Popular na Universidade, com incentivos de despertar, construir e partilhar Diálogos sobre suas bases, matrizes, atualidades, anseios e etc.
Era tão mágico presenciar a simplicidade e sagacidade do protagonismo e sua tradição. Mas foi o tempo, que me atinou novos olhares, sobre o valor destes mesmos protagonistas, suas potências e necessidades.
E um olhar mais cauteloso, me atentava a existência das apropriações; ao perigo do termo domínio público e um uso não íntegro dos legados e suas tradições. Dos descasos perante nosso patrimônio, nossos coletivos, e seus fazeres em continuidade.
E em fluxo, no Folclorando; o acolher eram em prol de professores e seus alunados, que em presenças coloridas e criativas, narravam enredos de nossos "Brasis"....
Aqui, a Dança Educação, transbordava!
Penso um dia, voltar com algum grupo, e reviver na cena, histórias de pretitudes.
E aqui neste grande cenário acadêmico, umbiguei presença em minhas primeiras roda de ritmos brasileiros.
Lá! Os tambores do Jongo, do Coco, do Cacuriá, do Frevo, das Cirandas e outras regionalidades nossas, eram ensinamentos.
Esta experiência fora um entrega ao mar, em tempos de renovo e esperança. Uma reza. De 2020.
— Olhar de Vitorino
Foram passos bem vividos, bem dançados e aprendidos. Mas também, muito transmutado quando vivenciados em espaços não acadêmicos. Pensando então, sobre a mesma conjuctura e saberes partilhados, por uma perspectiva de intelectos soberanos, eurocêntricos, e com formatos que vezes limitam e distorcem os conteúdos e a potência das narrativas e seus protagonistas.
No percurso; com o tempo, outras chegadas me foram acolhidas neste imenso universo. Atuei no grupo Jongo da Lapa ao longo de oito anos, e neste berço, pude destrinchar gigantes experiências com o tambor. Desde as visitas as suas comunidades tradicionais, as rodas realizadas uma vez ao mês debaixo dos Arcos da Lapa, as oficinas realizadas com o grupo e em concomitante outros passos subjetivos ao tambor, sendo alargados por buscas e reconstrução do Jongo em mim e possíveis novos caminhos de sê-lo.
Eu agradeço, ao grupo, seus líderes, e todo o primordial ensinamento, que lá acolhi e partilhei!
Neste mesmo período, ingresso no grupo Dandalua, onde nossas práticas eram e são voltadas para pesquisas que acolham o universo das matrizes do Jongo e do Coco. Ao mesmo tempo em dinâmicas com outros grupos e suas matrizes, fortalecendo nossas bases e experiências.
No corpo de Dança do grupo Afoxé Filhos de Gandhi, ao lado do meu primeiro mestre de dança Afro, Carlos Mutala, pude compreender em uma dinâmica de três anos, as atividades deste coletivo cumba, de bases em elo ao terreiro de Candomblé.
Sua sacralidade, sua festividade, suas iniciações, seu orixá, sua dança preta!
Em continuidade me aproximei novamente da Dança Afro, pelas propostas de corpo da mestra Aline Valentim, que com muita potência em sua construção, pude me ver, mergulhando profundamente em cada suor dançado com o tambor, em um afro contemporâneo de muita vivacidade.
Neste período, me início nas práticas de pesquisa do Maracatu, com a mesma mestra referenciada; com ênfase no corpo de Dança do então grupo Rio Maracatu, este, na época, mediado também por Aline Valentim.
Uma jornada de muito encontros, mudanças ciclos, e ressignificação de meu corpo.
Nesta época surgira-me um sopro: O Jongo me assenta e o Maracatu me liberta!
O tempo e as mudanças fluem e com ela realizo uma travessia para o Coletivo Baque Mulher, célula de origem do bairro do Bode em Recife, e idealizado por mestra Joana, no intuito de firmar a presença da mulher na percussão do Maracatu.
E com este fluxo, me encontro aqui, com o Agbê e suas mensagens.
Construção vivenciada na Marcha das Mulheres Negras. Em uma chegada com o coletivo Auá (Roberta Ribeiro, Vitorino e Jéssica Castro). De 2019
— Olhar de Jéssica Oliveira
Um período que a mestra Aline Valentim, migra em travessia potente para este Maracatu, liderado aqui, pela cumba Tenily Guian, também originária da favela do Bode, e mestra do corpo de batuqueiras na célula do Rio de Janeiro.
No fluxo a seguir vivêncio algumas experiências de artes cênicas, no grupo Companhia Horizontal de Arte Pública, a CHAP. Onde teci meus passos com o tambor do Jongo em aprendizados com a cênica do teatro de rua, e suas nuances.
Com eles participei do meu primeiro festival de Teatro, esse, na cidade de Passos em Minas Gerais.
Uma travessia interessante que me fizera conhecer outras potências e as possíveis dinâmicas de interagí-las as minhas danças e tambores. Fui desbravando a força do teatro, com este tecido de fundo.
Seguindo em dinâmicas, construi um grupo de nome Kalunga. Com uma formação de duas mulheres, uma mulher trans e um homem trans.
Onde nossas umbigadas, é a voz que ressalva o tambor contra às homofobias, lesbofobias, racismos e outras formas estruturalmente preconceituosas de serem opressões, e exclusões.
E desde então, a força deste nome e representatividade de Kalunga, se faz presente, como portal de chegada em muitas de minhas respirações. Sendo para além, traço identitário, de mitos e narrativas que a referenciam como pulso ancestral de nossa ancestralidade preta. Sigo rumo, com o desejo e o fazer pelas Pedagogias anti-racistas, pelo empretecimento de nossas ações, intervenções, protestos e protagonismo.
E endosso meu agradecer aos passos que a Dança, me fizera encontrar, me adentrar, despertar, e girar. A cada experiência até o momento vivida em visceralidade e entrega; ao que me fora revelado e empoderado. Ao que me tornei e sigo em flexibilidade de ser mais.. Foi Ela! A rainha Dança!
Documentário sobre o feminino no Jongo.
De Taiane Brito
Esta potente e afetiva construção de minha amiga Tai, revela em nuances, o meu encontro com o Jongo. 2018
Sou Jéssica Castro, mulher, ativista e mãe preta. Pedagoga pela Universidade Estácio de Sá e a concluir o Bacharelado em Dança na UFRJ. Pesquisadora e atuante no movimento em Dança/ Educação com ênfase em travessias que tragam debates sobre pedagogias e aplicabilidades anti racistas. Com imersões no grupo Jongo da Lapa, Dandalua, CHAP ( Cia Horizontal de Artes Pública), Primavera das Mulheres e kalungas. E ênfase em construções norteadas pelos saberes ancestrais da matriz do Jongo ( tradições e contemporaneidades).